Auto da Barca do Inferno – O Jogador de Futebol


O Auto da Barca do Inferno foi publicado em 1517, pelo dramaturgo português Gil Vicente.

Esta obra é uma alegoria do juízo final. Conforme o autor mesmo definiu, é um “auto da moralidade”; pois é o porto de encontro das almas após sua morte.

Ao chegarem nesse porto, na obra de Gil Vicente, os personagens se deparam com duas embarcações, uma comandada pelo Diabo, que conduz as almas para o inferno; e a outra conduzida por um Anjo, que conduz os passageiros para o paraíso. Quando as almas chegam ao porto suas vidas são julgadas, e cada um toma a embarcação que fez por merecer. Na obra original foram destacadas personagens de época: Fidalgo, Onzeneiro, Sapateiro, Enforcado etc.

Na presente releitura é enfatizada a barca do Barqueiro (gentil e sempre sarcástico) que conduzirá as almas para o inferno, permanecendo a do Anjo em outro plano. Os personagens são aqueles que tomam a nossa realidade: Político, Jogador de Futebol, Pirigueti, Traficante, etc.

Não importa a época vivida, todas as escolhas que as pessoas fazem ficam marcadas, e independentemente de nome, classe social, cor, sexo, profissão etc, percorremos um caminho único e inevitável: a morte. Assim, nossas ações serão julgadas, e por mais famoso, rico, ou intelectual que alguém possa ser, terá o seu destino eterno cravado em sua história. – Não adianta espernear se na barca do inferno for “convidado” para entrar...

 Cena I

JOGADOR DE FUTEBOL

Enquanto isso, aproxima-se mais um potencial passageiro para a barca do inferno:

Jogador: É gol, é gol, é gol... (grita o personagem, vibrando com os braços levantados e punho cerrado)

Barqueiro: Está louco, defunto estrambelhado da camisa branca e preta?

Jogador: Final do campeonato! A trave, a bola, o gol, cadê tudo? Aonde estou? (diz, gesticulando como se estivesse cabeceando a bola para o gol)

Barqueiro: Aqui é o final, mas não do campeonato. Seja bem-vindo à terra ardente, lugar daqueles que bateram as botas, daqueles que fecharam os olhos e não se levantarão mais! Entendeu?

Jogador: Não pode ser, você sabe quem eu sou?

Barqueiro: (olha bem para o jogador, coloca a mão no queixo) Não. Deveria!

Jogador: Sou eu, Dentucin, camisa 10 do Corintin! Lembrou?

Barqueiro: (olha bem para o jogador, fazendo feição de que se lembra) Ah, você é o Dentucin, camisa 10 do Corintin... Não lembrei!

Jogador: Só pode ser gozação! Já sei, você torce pro Flamenguin, São Paulin, Palmerin...

Barqueiro: Larga de conversa, entre logo que a barca está partindo para o lugar daqueles que não voltam mais...

Jogador: Mas como foi que eu morri? Era a final do campeonato?

Barqueiro: Deixe-me ver! (diz olhando para seu livro negro) Achei! Você é o Dentucin Gorduchin da Silva?

Jogador: Sim, sim, o maior goleador do Corintin!

Baqueiro: Aqui diz: Dentucin foi cabecear a bola para o gol... (fala com ênfase) aos 47 minutos do segundo tempo; seu time ganharia a taça com o gol, mas Dentucin tropicou em seu próprio pé, errou a bola e bateu com a cabeça na trave. O juiz acabou o jogo, o Corintin perdeu a final e Dentucin perdeu a vida.

Jogador: Não pode ser, o gol estava livre, livre...

Barqueiro: Pare de chorar e entre logo! Agora o seu passe é meu. Senta aqui e aprecie a vista!

Jogador: Mas eu não mereço estar aqui, fiz uma nação chorar com os meus gols, era conhecido como O Matador! Meu lugar é no céu... (diz apontando para o alto)

Barqueiro: Se está aqui não tem erro, não tem volta, pois uma pessoa correta você não foi.

Jogador: Como não! Eu ajudei a comunidade, dei dinheiro e comida pra rapaziada...

Barqueiro: Tá bom, tá bom... Vamos ver no livro, já que insiste tanto: Dentucin...

Jogador: O maior goleador do Corintin... (fala alto, interrompendo o barqueiro)

Barqueiro: (grita) Calado, defunto tagarela, e ouça: Dentucin, milionário jogador de futebol, esbanjava dinheiro em festas com álcool e outras coisinhas mais. Esnobava quem não tinha dinheiro, dava dinheiro para as mulheres para poder “namorar” com elas. Ambicioso e repleto de luxúria. Mentia até para a sua pobre mãe, chutava a bunda do seu velho pai, a quem, aliás, nunca ajudou. Dentucin, Dentucin, você amava a si mesmo e ao dinheiro mais que tudo! Quer que eu continue?

Jogador: Vamos negociar, minha camiseta suada e autografada, ou minha cueca cor de rosa preferida... mas, por favor, deixe eu ir lá pra cima que é mais fresco e arejado!

Barqueiro: Não adianta sapatear, jogador da cueca rosa, entre, entre e escolha um lugar, pois a barca já está partindo!!! Aproveite que hoje o passe é livre!

Jogador: (percebendo que não escaparia, cabisbaixo entra na barca)

- Assim, entra o primeiro personagem na barca, e o Barqueiro permanece imóvel, esperando mais uma alma.


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