Cena IV
O MÉDICO
Enquanto isso, aproxima-se mais um potencial passageiro para a barca do
inferno:
Médico: (vestido todo de branco) Que lugar mais sinistro, não
lembro de ter incluído um passeio ao vulcão em meu pacote de viagem...
Barqueiro: Aproxime-se, aproxime-se! (expressão e gestos de quem
quer adivinhar uma charada) Acaso é ano novo? Não, não; já sei, o prezado
defunto era pai de santo? Trabalhava na marinha? Quem sabe enfermeiro? Já sei,
já sei, é FANTASMA! Seja bem-vindo, alvejado fantasma, ao campo das almas
perdidas! Venha, suba, seu lugar já está reservado! Que bom que já veio a
caráter!
Médico: Errou todas, meu caro barqueiro, sou médico, e meu nome é
DOUTOR GUIMARÃES!
Barqueiro: Até que enfim alguém de boa classe. Inclusive acertou
que sou barqueiro, entre, vamos, para você a melhor vista de todo o submundo.
Médico: Acaso iria eu errar? Estamos em Veneza, não? Só não me
lembro exatamente desse sinistro ambiente!
Barqueiro: Não é Veneza douto defunto, seja bem-vindo à terra do fogo
ardente, daqueles que fecharam os olhos e não abriram mais. Sou o comandante
desta humilde embarcação, que o levará para um eterno turismo pela lava
ardente. Venha, aproveite, que é de graça...
Médico: (começa a se auto-avaliar, sente o pulso e se belisca) Se
estou morto, e aqui é o inferno, algo está absurdamente errado. Primeiro paguei
muito caro por um pacote de viagens pela Europa, primeira classe num navio de
mais alto luxo, e estava indo muito bem, obrigado, não tinha como ter morrido.
Segundo, eu deveria estar é no céu, pois sou DOUTOR, salvei muitas vidas. Que
justiça é essa?
Barqueiro: Silêncio, resmungão de branco. Muda só o nome, mas é
igual aos que aqui já estão, é incapaz de admitir o quanto errou em sua vida
terrena. Saiba que se está aqui é por que já foi julgado, e aqui irá pernoitar
pela eternidade. Entre na barca, pois já estamos partindo...
Médico: (perde a compostura, e começa a demonstrar desespero) Como
foi que eu morri? Mensageiro do inferno, já disse que salvei muitas vidas, meu
lugar não é aqui...
Barqueiro: Esperneie à vontade, mas daqui não sairá! Entretanto,
ouça o que vou contar, pois essa é uma consulta sem retorno. (começa a ler o
livro) Seu nome é Marcelo Marmelo Guimarães?
Médico: Doutor Guimarães, por favor.
Barqueiro: Calado, presunçoso cadáver. Aqui embaixo você é apenas
mais um. Médico, pedreiro, padre, sem teto, rei, general, não importa, bateu as
botas, não volta mais. Escute, já disse (volta a ler o livro): Marcelo Marmelo
viajava em um cruzeiro pelo mundo, e ao ingerir whisky em demasia em uma das
festas, foi até a proa do navio, e ao abrir os braços e se dizer O DONO DO
MUNDO, ficou tonto e caiu no oceano. A viagem seguiu normalmente, e até agora
ninguém sentiu a sua falta.
Médico: Tá bom, tá bom, talvez eu fosse um pouco arrogante, às
vezes, mas também, eu era DOUTOR...
Barqueiro: Silêncio, que ainda não acabei. Acaso lembra de algumas
dessas condutas e nomes que vou relatar? Ouça e responda: Jurou salvar vidas,
mas só fazia isso quando era pago, aliás, muito bem pago, cobrando muito além
daquilo que a maioria das pessoas podia pagar. Lembra da Maria, quando você a
deixou na sala de cirurgia por que não tinha dinheiro suficiente? Sim, você,
(fala com desdém) PREZADO DOUTOR, lembra das poucas vidas que salvou, mas é
incapaz de enumerar as várias vidas que poderia ter salvo! João, Pedro, Marta,
Mateus, Saulo, Paulo, Janete... (olha para o doutor) Puxa DOUTOR, quantos nomes
nesta lista, de pessoas que você poderia ter salvo, ou, simplesmente ajudado
num momento de dor. Se tem alguém que merece estar aqui, esse é você! Quer que
eu continue a ler a lista?
Médico: Mas eu só agia conforme a minha classe agia...
Barqueiro: Desculpas, como as têm! Mas não se preocupe, não é o
único de sua classe, há muitos, e muitos outros ainda virão. Amor ao dinheiro,
vaidade, luxúria, arrogância, ódio... Graças a isso meu emprego está garantido
para sempre, pois vocês humanos, independentemente da cor, do sexo, e da classe
social, sempre levarão isso com vocês. Não tente arrumar desculpas, entre na
barca em silêncio, que fica muito mais bonito para um homem da sua CLASSE...
Médico: (cabisbaixo, entra na barca)
Barqueiro: (olha para a plateia) Acho que vou fazer concurso para
ceifador, andar com aquela capa preta até os pés, empunhar a foice da morte.
Como seria prazeroso tirar algumas vidas, essas (aponta para os que estão na
barca), eu já teria tirado faz tempo (permanece em silêncio, olhando sério para
o vazio)
imagem: http://www.luispablo.com.br/politica/2012/09/atencao-abdon-murad-medico-de-barra-do-corda-faz-terrorismo-com-pacientes/
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