O Auto da Barca do Inferno foi publicado em 1517, pelo dramaturgo português Gil Vicente.
Esta obra é uma alegoria do juízo final. Conforme o autor mesmo definiu, é um “auto da moralidade”; pois é o porto de encontro das almas após sua morte.
Ao chegarem nesse porto, na obra de Gil Vicente, os personagens se deparam com duas embarcações, uma comandada pelo Diabo, que conduz as almas para o inferno; e a outra conduzida por um Anjo, que conduz os passageiros para o paraíso. Quando as almas chegam ao porto suas vidas são julgadas, e cada um toma a embarcação que fez por merecer. Na obra original foram destacadas personagens de época: Fidalgo, Onzeneiro, Sapateiro, Enforcado etc.
Na presente releitura é enfatizada a barca do Barqueiro (gentil e sempre sarcástico) que conduzirá as almas para o inferno, permanecendo a do Anjo em outro plano. Os personagens são aqueles que tomam a nossa realidade: Político, Jogador de Futebol, Pirigueti, Traficante, etc.
Não importa a época vivida, todas as escolhas que as pessoas fazem ficam marcadas, e independentemente de nome, classe social, cor, sexo, profissão etc, percorremos um caminho único e inevitável: a morte. Assim, nossas ações serão julgadas, e por mais famoso, rico, ou intelectual que alguém possa ser, terá o seu destino eterno cravado em sua história. – Não adianta espernear se na barca do inferno for “convidado” para entrar...
Cena I
JOGADOR DE FUTEBOL
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:


imagem: http://pseudoverdade.blogspot.com.br/2011/10/tabela-internacional-de-graduacao-de.html
Jogador: É gol, é gol, é gol... (grita o personagem, vibrando com
os braços levantados e punho cerrado)
Barqueiro: Está louco, defunto estrambelhado da
camisa branca e preta?
Jogador: Final do campeonato! A trave, a bola, o gol, cadê tudo?
Aonde estou? (diz, gesticulando como se estivesse cabeceando a bola para o gol)
Barqueiro: Aqui é o final, mas não do campeonato.
Seja bem-vindo à terra ardente, lugar daqueles que bateram as botas, daqueles
que fecharam os olhos e não se levantarão mais! Entendeu?
Jogador: Não pode ser, você sabe quem eu sou?
Barqueiro: (olha bem para o jogador, coloca a mão
no queixo) Não. Deveria?
Jogador: Sou eu, Dentucin, camisa 10 do Corintin! Lembrou?
Barqueiro: (olha bem para o jogador, fazendo feição
de que se lembra) Ah, você é o Dentucin, camisa 10 do Corintin... Não lembrei!
Jogador: Só pode ser gozação! Já sei, você torce pro Flamenguin,
São Paulin, Palmerin...
Barqueiro: Largue de conversa, entre logo que a
barca está partindo para o lugar daqueles que não voltam mais...
Jogador: Mas como foi que eu morri? Era a final do campeonato?
Barqueiro: Deixe-me ver! (diz olhando para seu
livro negro) Achei! Você é o Dentucin Gorduchin da Silva?
Jogador: Sim, sim, o maior goleador do Corintin!
Baqueiro: Aqui diz: Dentucin foi cabecear a bola para o gol...
(fala com ênfase) aos 47 minutos do segundo tempo; seu time ganharia a taça com
o gol, mas Dentucin tropicou em seu próprio pé, errou a bola e bateu com a
cabeça na trave. O juiz acabou o jogo, o Corintin perdeu a final e Dentucin
perdeu a vida.
Jogador: Não pode ser, o gol estava livre, livre...
Barqueiro: Pare de chorar e entre logo! Agora o seu
passe é meu. Sente aqui e aprecie a vista!
Jogador: Mas eu não mereço estar aqui, fiz uma nação chorar com os
meus gols, era conhecido como "O Matador"! Meu lugar é no céu... (diz apontando
para o alto)
Barqueiro: Se está aqui não tem erro, não tem volta,
pois uma pessoa correta você não foi.
Jogador: Como não! Eu ajudei a comunidade, dei dinheiro e comida
pra rapaziada...
Barqueiro: Tá bom, tá bom... Vamos ver no livro, já
que insiste tanto: Dentucin...
Jogador: O maior goleador do Corintin... (fala alto, interrompendo
o barqueiro)
Barqueiro: (grita) Calado, defunto tagarela, e
ouça: Dentucin, milionário jogador de futebol, esbanjava dinheiro em festas com
álcool e outras coisinhas mais. Esnobava quem não tinha dinheiro, dava dinheiro
para as mulheres para poder “namorar” com elas. Ambicioso e repleto de luxúria.
Mentia até para a sua pobre mãe, chutava a bunda do seu velho pai, a quem,
aliás, nunca ajudou. Dentucin, Dentucin, você amava a si mesmo e ao dinheiro
mais que tudo! Quer que eu continue?
Jogador: Vamos negociar, minha camiseta suada e autografada, ou
minha cueca cor de rosa preferida... mas, por favor, deixe eu ir lá pra cima
que é mais fresco e arejado!
Barqueiro: Não adianta sapatear, jogador da cueca
rosa, entre, entre e escolha um lugar, pois a barca já está partindo!!!
Aproveite que hoje o passe é livre!
Jogador: (percebendo que não escaparia, cabisbaixo
entra na barca)
- Assim, entra o primeiro personagem na
barca, e o Barqueiro permanece imóvel, esperando mais uma alma.
CENA II
A PIRIGUETE
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:
Piriguete: Não pode ser verdade, me belisca, me
belisca, eu sempre quis conhecer você, eu sempre sonhei com isso, EU TE AMO!
(diz abrindo os braços, indo em direção à barca)
Barqueiro: (diz olhando para a plateia) Nunca
ninguém me disse isso antes! (olha para a moça) Venha, entre na barca,
aproveite que é de graça!
Piriguete: (ignora o barqueiro e se aproxima de
Dentucin) Eu estou no paraíso, estou sonhando e não acordei! Dentucin... eu...
te... amo...
Dentucin: (não diz nada, apenas permanece com a
cabeça baixa e acena com a mão, desdenhando da moça)
Barqueiro: (olha para o público) Eu sabia que não
era pra mim. Aliás, não tem coisa pior que mulher que adora jogador de futebol
(fala fazendo sinal de dinheiro com os dedos), pois eles são tão bonitos e
“carrinhosos” (gesticula como se estivesse dirigindo e vira o rosto para a moça) Ei,
psiu, o pouca roupa, olha aqui!
Piriguete: Que foi o da capa antiga. Aliás, está
bem fora da moda, oh coisa de pobre!
Barqueiro: É uma pena que não posso tirar a vida de
quem já está sem vida (gargalha)!
Piriguete: Sem vida está você, o velhote, eu estou
vivíssima, e com um calor danado! (se abana)
Barqueiro: Aloou, olhe a sua volta, esse é o
caldeirão dos fins dos dias, aproveite... entre na barca e escolha um lugar,
pois a vida não te pertence mais. Entendeu?
Piriguete: Mas como foi que eu morri, eu sou tão
jovem e cheia de vida e amor pra dar.
Barqueiro: Lá vem vocês com esse papo (fala tirando
sarro, afinando a voz, e fazendo pose de madame) “Como foi que eu morri?’ Eu
era tão cheia de vida! Eu tinha tanto dinheiro” (procura no caderno e fala)
Achei: Ziguifrida Achin... o nome difícil!... Ziguifrida Achintzuma Melandrosa?
Piriguete: Mais conhecida como Boneca, mas pode me chamar de Melmel...
(quase grita) Escutou Dentucin, meu amor...
Barqueiro: Silêncio, matraca dos infernos! Não quer
saber por que a Boneca quebrou, o mel acabou? (ri consigo mesmo, dizendo) Essa
foi boa: a boneca quebrou, o mel acabou! (olha para a plateia) Tá bom, nem foi
tão engraçado assim...
Piriguete: (Tenta esticar a mão e pegar em Dentucin)
Barqueiro: O mocreia, escute: Ziguifrida Achintzuma
Melandrosa, (fala desdenhando) mais conhecida como boneca ou melmel, caminhava
pela beira mar, num dia lindo de verão, em que as pessoas estavam felizes...
(para de falar e continua) que nojo, pessoas felizes, praia, uéka, (e continua
a ler) quando... (faz silêncio, e faz cara de sério, coloca a mão na cabeça,
olha para baixo por alguns instantes e diz em tom alto) Que morte mais RI-DÍ-CULA! Tem certeza
que quer saber?
Piriguete: É claro, continue...
Barqueiro: Pois bem, continuemos a história:
Caminhava pela praia e, ao rebolar demais, se desequilibrou, caiu na areia e se
engasgou com o próprio chiclete! (gargalha, e repete “se engasgou com o
chiclete”) Meu, quanta incompetência!
Piriguete: Tá, tá, tá, tá bom, vi que já morri, agora
chega, mas eu quero ir é para o paraíso, o que foi que eu fiz de errado, o quê?
Barqueiro: (suspira fundo) É sempre a mesma
história, (fala zombando, fazendo gestos de madame) o que eu fiz de errado, eu
dava leite pros gatinhos, penteava o cachorrinho, bá, bá, bá, tá bom, tá bom,
escuta então...
Piriguete: (vai tentando escapar de fininho)
Barqueiro: Ei, ei, volta aqui o sem noção, aqui não
tem escada rolante, muito menos elevador, só tem esta humilde barca, a sua
disposição. Volte e escute: Boneca, Mel, ou seja lá qual for o seu nome. Você
foi imoral a sua vida inteira, homens casados eram os seus parceiros
prediletos, xingava todo mundo, aos 15 anos teve um filho e o abandonou no
lixão... Quer que eu continue?
Piriguete: Mas eu fiz muitas pessoas felizes com o
meu jeito divertido de ser...
Barqueiro: Mas fez mil vezes mais infelizes à custa
da sua felicidade... Não esperneie boneca melada, entre na barca, vem, como já
disse, e aproveite que hoje é de graça.
Assim, entra o segundo personagem na barca
Cena III
O FUNQUEIRO
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:
imagem: http://mingaudeaco.blogspot.com.br/2012/01/campanha-defende-doacao-de-fones-para.html
Funqueiro: (Entra cantando em ritmo de funk) Vô
fazê, vô fazê, vô fazê cê rebolá, rebolá, rebolá...
Barqueiro: Cale a boca, o do ritmo besta e da letra
pobre, eu sou o barqueiro e não sou obrigado a ouvir esse tipo de coisa! Fique
sabendo que não recebo insalubridade!
Funqueiro: Mano, que viagem! (fala dando uma olhada
ao redor) Você é o coisa ruim? Pô, aquela ervinha é boa mesmo, é a melhor
piração que já tive... dá até vontade de fazer uma rima...
Barqueiro: (grita em desespero) Não! Vê se acorda!
Você expirou e está numa viagem sem volta para a terra do fogo!
Funqueiro: Os mano não vai acreditá (fala indo em
direção ao barqueiro), você parece tão real, até dá pra escostá! (diz apertando
a bochecha do barqueiro)
Barqueiro: (coloca a mão espalmada na face, fazendo
feição de perplexidade, por não acreditar no que ouvia. Olha para a plateia, já
sem a mão na face) Depois dizem que usar uma ervinha não frita os neurônios!
(olha para o funqueiro e desfere um tapa no rosto dele. Canta em ritmo de funk
e mexendo as mão como se estivesse dançando) Acorda, acorda, acorda... (fala
sério e alto) ACORDA mano de pouco cérebro!
Funqueiro: Ei, esse tapa doeu! (fala como se
tivesse caído na realidade)
Barqueiro: E você morreu, mo-RREU. Já que acordou
vou repetir: Mim ser o barqueiro, você ser defunto fresco, esta ser a barca que
o levará para a terra que não tem axé, funk, nem pagode, muito menos música
sertaneja... (faz ânsia para vomitar, olha para o público) Sinto um embrulho no
estômago só de falar!
Funqueiro: Mas como vim parar aqui? Estava num
baile lá no morro, e a galera tava pirando...
Barqueiro: (olha para o público) Sou concursado,
não tenho que dar muita explicação. O contrato era claro: (levanta o livro)
segurar o livro da morte, (aponta para o funqueiro) embarcar os sem vida e
(aponta para o remador) chefiar a barca para a terra da perdição eterna. Não
estava escrito: falar, ler, dar explicações, e bá, bá, bá... Mas, (olha
para funqueiro) escute que minha fala não tem refrão.
Funqueiro: É todo revoltadinho, só pode ser roqueiro, ainda mais com
essa capa preta...
Barqueiro: (fala alto) Silêncio. Seu nome é Pedro
Minhoca?
Funqueiro: Fale baixo, todos me chamam de Nenén, o melhor funqueiro da
zona sul... ééé...
Barqueiro: (começa a ler o livro) O senhor MINHOCA,
após usar uma ervinha, foi cantar funk num palco na comunidade da zona sul,
empolgou-se e pulou do palco para que os espectadores o segurassem, mas como
ninguém o segurou, o seu MINHOCA caiu no chão, engolindo o microfone que
segurava nas mãos. Resumindo: morreu.
Funqueiro: Pô cara, nos shows de rock eles sempre
fazem isso e ninguém morre. Eu levava a minha música prôs mano e pras mina,
eles piravam... eu não mereço ficá nesse lugar, onde a minha arte não é
valorizada...
Barqueiro: Arte? Não me venha com essa! Vou
resumir, que a questão é simples: (olha para a plateia) é só subir na barca e
ficar calado até a partida. Só isso, nada mais! Já vou dizendo que não adianta
rebolar, pois vocês levam uma vida medíocre, de escolhas erradas, e ainda
querem que eu justifique! O que vou fazer é apenas ler a sua página, então
preste atenção: (olha para o funqueiro, abre o livro e o lê) Minhoca, mais
conhecido como Funqueiro Neném, com suas letras incentivou as pessoas ao uso de
drogas, à prostituição, incentivou à violência, ao uso de armas, fato que levou
muitas pessoas a agirem de forma errada... Quer que eu continue? Desenhe?
Funqueiro: Mas sempre ouvi dizer que quem canta seus males espanta,
ou, ainda, quem canta reza duas vezes...
Barqueiro: Pare de falar tanta asnice, homem sem
tom, que de você não tenho dó, e vou levá-lo de ré, lá para a terra sem sol.
Reconheça os seus erros e a falta de acordes, admita que funk não é música, mas
que não passa de poluição sonora, e que você nunca cantou, apenas expeliu
golfadas rimas desafinadas. Vamos meu caro Minhoca, entre na barca, escolha o
seu lugar, e aproveite que hoje é de graça!
Funqueiro: Pode repetir tudo, que não entendi nada...
Barqueiro: Entre em silêncio! (fala irritado)
Funqueiro: (cabisbaixo, entra na barca)
Barqueiro: (olha para a plateia) Quanta tristeza para um barqueiro só!
Um jogador de futebol, uma piriguete e um funqueiro, todos na mesma barca! Quem
é que falta agora?
Cena IV
O MÉDICO
Aproxima-se mais um potencial passageiro para a barca do inferno:
Médico: (vestido todo de branco) Que lugar mais
sinistro, não lembro de ter incluído um passeio ao vulcão em meu pacote de
viagem...
Barqueiro: Aproxime-se, aproxime-se! (expressão e gestos de quem quer
adivinhar uma charada) Acaso é ano novo? Não, não; já sei, o prezado defunto
era pai de santo? Trabalhava na marinha? Quem sabe enfermeiro? Já sei, já sei,
é FANTASMA! Seja bem-vindo, alvejado fantasma, ao campo das almas perdidas!
Venha, suba, seu lugar já está reservado! Que bom que já veio a caráter!
Médico: Errou todas, meu caro barqueiro, sou
médico, e meu nome é DOUTOR GUIMARÃES!
Barqueiro: Até que enfim alguém de boa classe.
Inclusive acertou que sou barqueiro, entre, vamos, para você a melhor vista de
todo o submundo.
Médico: Acaso iria eu errar? Estamos em Veneza,
não? Só não me lembro exatamente desse sinistro ambiente!
Barqueiro: Não é Veneza douto defunto, seja
bem-vindo à terra do fogo ardente, daqueles que fecharam os olhos e não abriram
mais. Sou o comandante desta humilde embarcação, que o levará para um eterno
turismo pela lava ardente. Venha, aproveite, que é de graça...
Médico: (começa a se auto-avaliar, sente o pulso e
se belisca) Se estou morto, e aqui é o inferno, algo está absurdamente errado.
Primeiro paguei muito caro por um pacote de viagens pela Europa, primeira
classe num navio de mais alto luxo, e estava indo muito bem, obrigado, não
tinha como ter morrido. Segundo, eu deveria estar é no céu, pois sou DOUTOR,
salvei muitas vidas. Que justiça é essa?
Barqueiro: Silêncio, resmungão de branco. Muda só o
nome, mas é igual aos que aqui já estão, é incapaz de admitir o quanto errou em
sua vida terrena. Saiba que se está aqui é por que já foi julgado, e aqui irá
pernoitar pela eternidade. Entre na barca, pois já estamos partindo...
Médico: (perde a compostura, e começa a demonstrar
desespero) Como foi que eu morri? Mensageiro do inferno, já disse que salvei
muitas vidas, meu lugar não é aqui...
Barqueiro: Esperneie à vontade, mas daqui não
sairá! Entretanto, ouça o que vou contar, pois essa é uma consulta sem retorno.
(começa a ler o livro) Seu nome é Marcelo Marmelo Guimarães?
Médico: Doutor Guimarães, por favor.
Barqueiro: Calado, presunçoso cadáver. Aqui embaixo
você é apenas mais um. Médico, pedreiro, padre, sem teto, rei, general, não
importa, bateu as botas, não volta mais. Escute, já disse (volta a ler o
livro): Marcelo Marmelo viajava em um cruzeiro pelo mundo, e ao ingerir whisky
em demasia em uma das festas, foi até a proa do navio, e ao abrir os braços e
se dizer O DONO DO MUNDO, ficou tonto e caiu no oceano. A viagem seguiu
normalmente, e até agora ninguém sentiu a sua falta.
Médico: Tá bom, tá bom, talvez eu fosse um pouco
arrogante, às vezes, mas também, eu era DOUTOR...
Barqueiro: Silêncio, que ainda não acabei. Acaso
lembra de algumas dessas condutas e nomes que vou relatar? Ouça e responda:
Jurou salvar vidas, mas só fazia isso quando era pago, aliás, muito bem pago,
cobrando muito além daquilo que a maioria das pessoas podia pagar. Lembra da
Maria, quando você a deixou na sala de cirurgia por que não tinha dinheiro
suficiente? Sim, você, (fala com desdém) PREZADO DOUTOR, lembra das poucas
vidas que salvou, mas é incapaz de enumerar as várias vidas que poderia ter
salvo! João, Pedro, Marta, Mateus, Saulo, Paulo, Janete... (olha para o doutor)
Puxa DOUTOR, quantos nomes nesta lista, de pessoas que você poderia ter salvo,
ou, simplesmente ajudado num momento de dor. Se tem alguém que merece estar
aqui, esse é você! Quer que eu continue a ler a lista?
Médico: Mas eu só agia conforme a minha classe
agia...
Barqueiro: Desculpas, como as têm! Mas não se
preocupe, não é o único de sua classe, há muitos, e muitos outros ainda virão.
Amor ao dinheiro, vaidade, luxúria, arrogância, ódio... Graças a isso meu
emprego está garantido para sempre, pois vocês humanos, independentemente da
cor, do sexo, e da classe social, sempre levarão isso com vocês. Não tente
arrumar desculpas, entre na barca em silêncio, que fica muito mais bonito para
um homem da sua CLASSE...
Médico: (cabisbaixo, entra na barca)
Barqueiro: (olha para a plateia) Acho que vou fazer concurso para
ceifador, andar com aquela capa preta até os pés, empunhar a foice da morte.
Como seria prazeroso tirar algumas vidas, essas (aponta para os que estão na
barca), eu já teria tirado faz tempo (permanece em silêncio, olhando sério para
o vazio)
Cena V
O TRAFICANTE
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:
Traficante: (entra gritando) Cale a boca que quem
manda aqui sou eu!
imagem: http://www.viacomercial.com.br/2012/04/05/traficante-mais-perigoso-do-agreste-alagoano-tenta-fugir-vestido-de-mulher/
Barqueiro: (em tom e gestos afeminados) Ui, eu
adoro homens valentes, que gostam de mandar! (pigarreia) Rum, rum, seja
bem-vindo prezado mandalhão! Olhe bem a sua volta e me responda: Quem está com
a capa preta? Quem segura o livro da morte? Quem comanda a barca do inferno? E
agora diga quem é que manda nesse pedaço de terra escaldante?
Traficante: (olha para os lados) Fui capturado e não percebi! Fala aí,
cara feia, que morro é esse que nunca vi? É da zona norte? É o morro do Bituca,
da Pipoca? Mas já vou te adiantando, quando meus chegado chegá, vão detoná todo
esse barraco sem classe! Aliás, você sabe com quem tá falando, eu sou o Black,
maior traficante do Midigal, na minha área os cara tremem e as mina piram! Tá
ligado, cara feia!?
Barqueiro: (tom e gestos afeminados) Ai que medo,
como estou tremendo, vou pular da barca e me afundar na lava neste mundo do
cão! (tom sério) Olhe bem a sua volta, aqui você não manda não, usuário
alucinado. Entre na barca e vamos viajar, hoje é de graça!
Traficante: Usuário não, que não era burro nem
besta, eu vendia para os otários, só isso, ganhava minha graninha, tinha meus
seguranças e chefiava o morro. Entendeu, o da capa chinfrim?
Barqueiro: Que bom que compreendeu, novo USUÁRIO da
barca. Usou muito bem os verbos no PASSADO: vendia, ganhava, tinha, chefiava.
Agora é só você, e se está aqui, ao pé da barca, coisa boa é que não fez.
Aliás, bem pelo contrário, se vendeu drogas, então destruiu vidas, lares,
colocava terror nas pessoas... Então digo e repito: bem-vindo ao caminho sem
volta, lar do cão nefasto.
Traficante: Preste atenção: Eu sou Black, do
Midigal, mandava matar, sem dó nem piedade, temido por todos, como iria eu
morrer sem ao menos perceber, diga barqueiro do inferno.
Barqueiro: Seu nome é Rodrigo Pereira da Cruz?
Traficante: Me chame de Black, que é em inglês e
impõe respeito!
Barqueiro: Respeito? (gargalha) Só se for das
pessoas comuns, por que dos seus comparsas, com certeza não. Ouça como você foi
morto...
Traficante: Fui morto o escambau, se morri, só pode ter sido um
ataque cardíaco, um derrame, ninguém me mataria, como disse, sou o Black, do
Midigal.
Barqueiro: Calado, Rodrigo Pereira da Cruz, você
realmente morreu do coração e também de derrame...
Traficante: Não disse, ninguém ousaria me matar...
Barqueiro: Silêncio, que ainda não terminei, ouça o
que direi: Rodrigo, conhecido traficante de uma comunidade, ao efetuar uma
entrega de droga, e ao receber dinheiro dos compradores, foi morto por um tiro
em seu próprio barraco, por um dos seus seguranças, o primeiro tiro atingiu o
coração pelas costas, e após ter caído no chão, outro segurança atingiu a
cabeça de Rodrigo com outro disparo. Os dois se venderam por merrecas.
Traficante: Morto pelas costas e pelas mãos dos meus
próprios seguranças, que filhos da...
Barqueiro: Silêncio, (com desdém) amado e
respeitado Black...
Traficante: Como silêncio, eu dava emprego para aqueles ingratos, que
juraram fidelidade a mim. Se tinha alguém precisando de remédio, eu comprava;
se passava fome, eu dava comida. Todos me amavam! Até pensei em me candidatar
para prefeito.
Barqueiro: (lendo o livro) Rodrigo, o temido Black,
o esperto e corajoso do Midigal, o livro é a sua perdição, aqui diz: mandou
matar homens, mulheres, crianças; ameaçava todos; amava o dinheiro sujo do
tráfico; com suas drogas destruiu incontáveis pessoas e famílias; mandava atear
fogo em ônibus, escolas... Quer que eu continue?
Traficante: Era dinheiro fácil! Os burros e idiotas vinham até mim para
comprar coisas ilegais, eu era apenas o comerciante que não podia ficar no
prejuízo; se deviam, de alguma forma tinham que pagar. Muitos com uma surra
aprendiam, outros com a vida. O medo era a alma do negócio!
Barqueiro: (grita demonstrando raiva) Chega de papo, que não
somos compadres! Entre nesta barca antes que eu mostre meu chicote, e lhe
mostre que aqui, assim como na sua vida terrena, você não é nada, e não
passa de um maldito. Entre agora, que gente da sua laia é aqui muito bem-vindo.
Traficante: (entra rápido na barca, de cabeça baixa)
Barqueiro: (olha para o traficante enquanto ele entra na barca)
Cena VI
O LADRÃO
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:
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imagem: http://www.tumblr.com/tagged/paternidade?before=18
Ladrão: (de chinelo de dedo, aparência humilde) Ei, o doutor,
sabe me dizer onde estou?
Barqueiro: Com prazer, pé de chinelo! Está no
abismo, terra perdida, caverna do cão, terra dos que não se levantam mais...
Entendeu?
Ladrão: Se este é o inferno, quer dizer que estou morto?
Barqueiro: (batendo palmas) Parabéns, sábio rapaz,
já que acertou, ganhou uma passagem de ida ao fundo do poço! Vamos, entre que a
barca já está partindo.
Ladrão: Sei que muito eu errei, mas como foi que eu morri!
Barqueiro: (mexendo no livro) Eduardo Catatau, esse
é o seu nome?
Ladrão: Sim, doutor.
Barqueiro: Tá, mas não tem nenhum apelido, “O
Matador”, ou então, “Black”, ou ainda, “Doutor Catatau”?
Ladrão: Não senhor, só Eduardo Catatau.
Barqueiro: Oh, coisa chata! E quais são as
desculpas para ir para o céu? Tem, não tem? Vai espernear, não vai?
Ladrão: (com
voz humilde) Fiz muita coisa errada nessa vida...
Barqueiro: (fala irritado) Chega com essa
lengalenga, querendo dar uma de bom moço, conheço bem o seu tipo. Se está aqui
é porque fez coisa errada! (olha o livro) Ouça só: Eduardo Catatau furtou e
mentiu, ponto. Isso já é o suficiente! (fecha o livro) Entre amigo, que o seu
lugar já está reservado, sente-se ao lado do douto doutor!
Ladrão: (começava
a entrar com a cabeça baixa)
Anjo: (grita) Espere, houve um erro, o lugar de
Eduardo Catatau não é na angústia eterna!
Barqueiro: (farejando o ar) Sinto cheiro de sabão
em pó! Estava bom até agora. O que faz aqui coisa branca?
Anjo: Resgatar uma pobre alma que não merece
estar aqui...
Barqueiro: (grita) Como não merece? Roubou, mentiu, quer mais que
isso?
Anjo: Roubou para matar a fome do filho! Mentiu
para conseguir sobreviver!
Ladrão: Isso é verdade, tudo o que fiz foi para proteger o meu
filho querido!
Barqueiro: Silêncio, que morto não fala! Além do
mais, minha cara branquela alada, mentir para conseguir emprego, roubar com a
desculpa de alimentar seu filho, convenhamos, veio ao submundo por uma causa
perdida, olha para o traste, vale um centavo?
Anjo: Vejamos o livro da vida! (abre e lê o
livro) Seu Eduardo Catatau enviuvou quando sua esposa teve o filho. Eduardo não
tinha parentes e com o filho recém-nascido passou necessidade, buscou emprego
ou qualquer outro trabalho que lhe ajudasse a alimentar o pequeno. Como tinha o
aspecto humilde todos negavam serviço. Falava que era para sustentar o filho,
mas ninguém colaborava. Começou a mentir, ameaçando as pessoas, dizendo que
iria matá-las ou atear fogo na casa delas, então pegava dinheiro e comida para
conseguir passar mais um dia vivo com seu filho, mas nunca fez mal para ninguém.
Ao perceber que seria melhor deixar a criança em um lar adotivo e buscar erguer
a sua vida sozinho, para depois buscá-lo, tomou coragem e assim o fez. Então
deixou a criança à porta de uma casa, tocou a campainha e saiu correndo.
Entretanto, ao olhar para trás, para dar um último adeus ao seu pequeno filho,
um ônibus o atropelou. E aqui, agora está, perdido, pobre alma injustiçada. Vim
buscá-lo! (segura a mão do ladrão)
Barqueiro: (faz cara e gestos de gozação, assoando
o nariz na capa) Como eu fico comovido com essas historinhas. Buá, buá, buá,
pode levá que aqui almas nunca faltará, aliás, lá em cima sim, deve estar uma
pobreza de almas boas, para vir buscar esse aqui embaixo, deve ser um desespero
só. Veja branquela, a barca repleta, fique com inveja...
Anjo e ladrão: (ignorando as palavras do barqueiro, saem do cenário de
mãos dadas, anjo conduzindo o ladrão)
Barqueiro: (olha para a plateia) Meu coração deve estar amolecendo.
Houve épocas que eu teria arrastado ele para a barca. Mas como eu disse, aqui
está sobrando, lá faltando. (fala para o vazio) Tchau branquela, tchau pé de
chinelo! (fica em silêncio, olhando para o nada)
Cena Final
O POLÍTICO
Aproxima-se mais um potencial passageiro
para a barca do inferno:

imagem: http://professorgadomski.blogspot.com.br/2012_09_01_archive.html
Político: (afoito e nervoso) Espere aí, espere aí que eu quero
entrar!
Barqueiro: Vamos, vamos que já estamos partindo!
Político: Quanto é a passagem? (pergunta tirando algumas cédulas de
dinheiro do paletó)
Barqueiro: Que é isso? Não precisa pagar, pois hoje
é de graça! Aliás, é advogado com essa gravata, quem sabe pastor, ou talvez
golpista ou empresário?
Político: (entra na barca e toma um lugar) Que é isso cidadão, sou o
vosso representante na assembleia, nunca ouviu falar do senador Tonhão?
Barqueiro: Senador Tonhão! Por que não falou
antes?!
Político: Exato! Foi meu projeto que colocou uma rapadura e um litrão
d’água ardente na cesta básica do povão. Sabia que iria me reconhecer! Você é
do norte, não é?
Barqueiro: Norte, Sul, Leste ou Oeste, o que importa? Aliás,
desculpe-me, mas nunca o vi mais gordo, nem mais magro; aqui embaixo, (olha
para a plateia) não pega nem a Voz do Brasil. Mas, conte-me, como entrou aqui
com esse dinheiro embaixo do paletó?
Político: Não subestime a influência de um senador da vossa
república, fique sabendo que tenho os meus contatos, e, além do mais, você
ficaria assombrado se soubesse de todos os lugares que eu consigo esconder
dinheiro! Quer ver?
Barqueiro: (fala com ênfase) Eu realmente não quero
saber, muito menos ver! Dá uma dor só de pensar!
Político: (grita nervoso) Que tagarela! Vamos! Por que esse barco
ainda não partiu?
Barqueiro: Mas você sabe como veio parar aqui? Onde
está e para onde está indo?
Político: Lembro da escadaria da saída dos fundos... Ah quer saber,
eu não quero saber, e no caminho você me conta! Saia daqui logo, pois acho que
fui grampeado e a federal está atrás de mim. Tudo por causa de uma mesadinha,
de um agrado de um amigo empresário.
Barqueiro: Gosto de homens assim, decididos, que
entram na barca sem titubear. Saiba que vou levá-lo para um lugar onde irá
encontrar vários amigos seus, todos engravatados, representantes do povo, que
contribuíram com a saúde, educação e segurança de suas próprias famílias, e de
ninguém mais!
Político: Converse menos! Vamos logo, aumento a gorjeta, e se sair
daqui rápido, tento encaixá-lo em alguma licitação lucrativa, talvez para a copa
ou olimpíada. Ande vamos...
Barqueiro: Remador, hora de partir, reme, reme...
(olha para a plateia) Mas não se preocupem, almas perdidas, daqui a pouco
buscaremos vocês, hahahahaha...
Fim
(ao menos em partes...)
(ao menos em partes...)
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