Qual vida vale mais: a de um cachorro, gato ou passarinho?


Bianca, mulher, 33 anos, de pele branca e olhos verdes estonteantes, chegou do trabalho no final do dia. Abriu a porta da casa e logo foi recepcionada pelo Pingo, um cachorro vira-lata de pelagem preta como a noite, que se achegou a ela balançando o seu rabo de felicidade. Então Bianca se agacha, pega Pingo no colo, e enquanto ele lhe lambe a mão, ela vai até o armário, pega o martelo e sai até o jardim colorido. Abaixa-se, segura o cachorro do seu marido pelo pescoço pressionando-o contra o chão, encara aqueles olhos amendoados e úmidos e ergue o martelo acima da altura da cabeça.



Pedro, 33 anos, homem negro de tonicidade muscular saliente, também chegou em sua casa após mais um dia de trabalho. Abriu a porta da casa e lá estava Mel, uma gata persa, branca como a neve, que ronronando veio esfregando-se no pé para saudá-lo. Então Pedro se agacha, segura Mel no colo, e enquanto ela se espreguiça, ele caminha até o armário, pega o martelo e sai até o jardim florido. Abaixa-se, segura a gata de sua esposa pelo pescoço pressionando-o contra o chão, encara aqueles olhos azuis e indecifráveis, ergue o martelo acima da altura da cabeça.



Cris, homossexual, 33 anos, de pele morena e de calma invejável, chegou do trabalho ao findar de mais um dia de labor. Abriu a porta da casa e logo veio Piu-Piu, um passarinho de cores vivas, pousar em seu ombro e dar as boas-vindas, como sempre fazia. Então Cris envolve o passarinho em suas delicadas mãos e caminha até o armário,  enquanto o bichinho cantarola pega um martelo e sai até o bem cuidado jardim de flores primaveris. Abaixa-se, segura o passarinho do seu cônjuge pelo pescoço e pressiona contra o chão, encara aqueles pequenos olhinhos  e ergue o martelo acima da altura da cabeça.



Os três vizinhos, pessoas de reputação ilibada, bem sucedidas e de relacionamento estável, sem problemas financeiros.

Em uma sincronia diabólica, com a intenção de matar, descem o martelo e batem na cabeça do animal que seguravam pelo pescoço, cada qual com uma força suficiente para machucar. Mas ao verem que os pobres e indefesos animais tremelicavam as pernas, subiram novamente os martelos e desceram novamente uma, duas vezes, até as cabeças estarem desfiguradas e os corpos imóveis.

A polícia foi chamada e como estava próxima, chegou ao local na sequência, prendendo em flagrante os três vizinhos que acabaram de tirar cada um, uma vida.

Embora feitos em dias diferentes e com juízes diferentes, todos foram julgados e receberam a mesma condenação, pois tiraram a vida de um indefeso animal, independente dos traços individuais, a vida, nesse país, valia por ela mesma, e só isso bastava.  

Tempos depois relacionaram os crimes, e viram que foram independentes e tudo não passou de uma sinistra coincidência. 

Para tornar tudo mais diabólico ainda, descobriu-se que na cidade do país vizinho, que ficava a menos de 60 quilômetros, também ocorrera no mesmo dia, com três distintos cidadãos, os mesmos atos de violência e crueldade – como se o mesmo quadro fosse pintado duas vezes -.  Eles também foram presos e julgados, mas com um detalhe: nesse país as leis eram muitas, e se orgulhavam disso, pois era possível julgar e condenar alguém por pequenos detalhes, individualizando o crime.

Pois bem, nesse país cada um cometeu um crime: cachorrocídio, gatocídio e passarinhocídio. Cada um com especificações de pena, agravantes e atenuantes: se o cachorro era de raça ou vira-lata fazia diferença, se tinha a pelagem branca ou preta era agravada ou não a sentença. Ainda questionaram se o cachorro era castrado, se latia grosso ou fino, cada detalhe fazia muita diferença.

Naquele país, além de fazerem isso com cada animal também fizeram a mesma coisa com os cidadãos que estavam em conflito com a lei. Por tudo isso o julgamento de cada um demorou muito mais do que no outro país. Ao final, cada um foi julgado, dois receberam penas bem diferentes e um outro foi considerado inocente.

Nesse país se percebeu que cada animal tinha um valor diferente, que cada um era mensurado pela cor da pelagem e dos olhos, se era de raça ou não, se tinha dentes, garras ou um bico. A vida, nesse país, tornou-se apenas um detalhe que nada significava, e se a pessoa certa escolhesse bem qual animal matar, e tivesse condições de pagar um bom contador de histórias para defendê-la no tribunal, ainda poderia receber uma pena muito branda ou até mesmo sair impune.

Mesmo após debatidos julgamentos, nesse país ainda sempre ficou a dúvida: qual vida vale mais? A de um cachorro, a de um gato, ou a de um passarinho?

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